Ao ver o que estava sendo feito com a web que criou em 1989 para ser algo totalmente livre e acessível a todos os usuários, Sir Tim Berners-Lee não poderia simplesmente ficar parado assistindo tudo com um sentimento de desgosto, então ele resolveu colocar a mão na massa novamente.
Berners-Lee lançou oficialmente o seu novo projeto, Solid, uma espécie de web descentralizada, criada para oferecer mais poder e controle aos próprios usuários, em vez de deixá-los na mão das grandes corporações de hoje em dia.
Em um post chamado “Um Pequeno Passo para a Web…”, Berners-Lee também apresentou a Inrupt Inc., empresa que vai cuidar da plataforma Solid e também torná-la viável. No texto, Tim explica melhor o conceito por trás do Solid, e também os motivos pelos quais o projeto tem uma importância vital para o atual momento da internet:
“Eu sempre acreditei que a web é para todos. É por isto que eu e outros brigamos ferozmente para protegê-la. As mudanças que conseguimos trazer criaram um mundo melhor e mais conectado, mas apesar de tudo de bom que alcançamos, a web evoluiu em uma máquina de iniquidade e divisão; controlada por forças poderosas que a usam para seus próprios objetivos.”
Pelas suas palavras, dá pra ver que Berners-Lee está bem chateado, mas quem não ficaria, ao ver o que várias corporações têm feito com a web, umas transformando-a em uma espécie de jardim murado, outras permitindo mudar o resultado de eleições, e a maioria criando sua própria versão do Grande Irmão de 1984 mas voltada para o lado comercial, no qual a privacidade dos usuários é um mero detalhe ou algo a ser negociado pela maior oferta. Orwell certamente não ficaria orgulhoso.
O criador da World Wide Web nunca escondeu publicamente toda a sua insatisfação com os rumos que a web vem tomando, e nos últimos tempos acredita que a situação esteja cada vez pior:
“Hoje, eu acredito que chegamos a um ponto crítico, e que uma mudança poderosa para melhor é possível — e necessária. É por isto que eu tenho, através dos últimos anos, trabalhado com pessoas no MIT e em outros lugares para desenvolver o Solid, um projeto open-source para restaurar o poder e a agência dos indivíduos na web.”
Sir Tim tem a total consciência de que a sua invenção acabou sendo usada para o mal, e está devastado com isso, como disse mês passado em uma entrevista ao Vanity Fair. O fato de Mark Zuckerberg ter mais culpa ainda não serve de consolo, como ele deixou bem claro em março deste ano em seu perfil do Twitter.
O Solid já é um projeto antigo de Berners-Lee no MIT, como mostra esse post do TB, e seu paper foi publicado em abril de 2016, quando ele e outros autores apresentaram pela primeira vez a plataforma. Na verdade, sua preocupação com essa guarda de dados dos usuários por parte das corporações é bem antiga, como mostra esse documento do WC3 de 9 anos atrás.
Infelizmente, o seu projeto antigo parece estar se tornando mais atual e necessário a cada dia que passa. Berners-Lee conta o que pretende fazer a respeito com o Solid, sem escapar de uma referência a Star Wars:
“O Solid é como vamos evoluir a web para poder restaurar o balanço — ao dar para cada um de nós um controle total sobre dados, pessoais ou não, de forma revolucionária. O Solid é uma plataforma, criada usando a web atual. Ela dá a cada usuário uma escolha sobre onde seus dados estão armazenados, que pessoas e grupos específicos podem acessar certos elementos, e que aplicativos você usa.”
Os objetivos da Solid não são nada modestos, muito pelo contrário. Criada como um projeto de código aberto com a intenção de alcançar uma “dominação mundial”, segundo uma declaração de Berners-Lee ao Fast Company. Mas como fazer pra alcançar esse objetivo aparentemente utópico?
É aí que entra a Inrupt Inc. Tim Berners-Lee vai usar a empresa que fundou em sociedade com John Bruce para viabilizar todo o projeto e transformar o Solid em um produto realmente comercial, ou seja, ela será a responsável por encontrar formas de manter o Solid no ar, sempre de forma independente, é claro. O Fast Company conta que a empresa já está na ativa há nove meses, mas de forma discreta.
Durante todo este tempo em que esteve trabalhando na sua visão de uma internet sem cadeados, Berners-Lee não trabalhou sozinho, muito pelo contrário, sempre buscou a opinião, o apoio e a contribuição de seus colegas, mesmo os que trabalham nas grandes empresas que ele quer incomodar.
Em julho deste ano, por exemplo, rolou o Decentralized Web Summit do Internet Archive, onde ele, Vint Cerf e outros pensadores discutiram o que poderia ser feito para criar uma web mais descentralizada. Quem acompanha a série Silicon Valley sabe que este é um tema recorrente da última temporada, e um dos produtos inovadores da sua empresa fictícia Pied Piper. Neste encontro, rolou inclusive um papo com o criador da série Mike Judge e o autor Cory Doctorow.
O nome Inrupt é uma brincadeira com o termo disrupt (disrupção), tão em voga hoje em dia, e dá uma mostra de como Berners-Lee pretende usar o maior calcanhar de Aquiles dos seus oponentes para tornar o Solid um sucesso comercial e um projeto viável a longo prazo, a falta de confiabilidade no que estas empresas fazem com seus dados. Em um post no blog da Inrupt, Bruce conta que está bem animado com a “reação de empresas e parceiros em potencial” ao Solid.
Mesmo que não consiga atingir seu objetivo de criar um ecossistema lucrativo através da comercialização de aplicativos certificados e hospedagem pelo Solid, a Inrupt Inc. já conta com financiamento da Glasswing Ventures, empresa conhecida por apostar em novas tecnologias como IA, e que ontem deu RT em uma matéria sobre o Solid em seu perfil no Twitter, mostrando que estão animados com seu investimento.
Indo além da questão da privacidade dos dados dos usuários, Berners-Lee tem a visão de que o Solid possa ser uma evolução real da web, tornando-a mais democrática e mais acessível para os usuários, que além de poderem consultá-la como uma biblioteca, também poderão participar do processo, dando suas próprias contribuições, não apenas comentários ou posts em redes sociais ou sites.
Ele acredita que com o Solid, poderemos finalmente explorar os dados disponíveis globalmente como um grande computador universal. Tim cita o exemplo de dados abertos governamentais, que estão disponíveis apenas para leitura e pesquisa, mas não para a colaboração das pessoas. No Solid, os usuários finalmente “poderão interagir e inovar, colaborar e compartilhar”, em suas palavras. Parece puro blá-blá-blá de marqueteiro, mas quem conhece a trajetória e o trabalho de Berners-Lee, sabe que não é o caso.
Em uma apresentação no TED em 2009, Berners-Lee falou sobre a diferença entre uma web de documentos, que você simplesmente consultar e uma web de dados, com os quais você pode interagir. O criador da web também aposta bastante no potencial comercial do seu novo empreendimento, pois acha que existe uma demanda por serviços realmente confiáveis, citando o Dropbox como exemplo de algo pelo qual as pessoas pagam para usar hoje em dia pela tranquilidade que sentem na qualidade e segurança do serviço que ele oferece. Voltando ao seu texto atual sobre o Solid:
“As pessoas querem uma web na qual possam confiar. As pessoas querem aplicativos que os ajudem fazendo o que eles precisam — sem que as espionem. Apps que não tenham motivos para distraí-los com proposições de comprar isto ou aquilo. As pessoas pagam por este tipo de qualidade e segurança.”
Também está nos planos um assistente pessoal como a Alexa, o Google Assistant ou a Siri, que se chamará Charlie, também criado com o mesmo conceito do Solid, a preocupação de não usar os dados dos usuários de forma leviana. Segundo a declaração do CEO da Inrupt John Bruce ao Boston Herald:“Charlie vai trabalhar pra você, Charlie não trabalha para o Google ou Amazon.”
O Solid pode ser realmente um novo capítulo para a web, pois tudo me parece muito bem planejado e bem estruturado. A promessa também é linda, além da questão da privacidade, são aplicativos com acesso a todos os outros do mesmo ecossistema, todos se comunicando melhor e trabalhando para o usuário. Resta agora a Inrupt Inc. entregar algo realmente sólido, como o próprio nome promete.
O próprio tamanho deste texto já mostra que eu estou bem animado com o Solid, mas como fã de carteirinha do Tim Berners-Lee, e com motivos pessoais de sobra pra não gostar de certa rede social, admito que a minha opinião pode ser suspeita neste assunto específico, então fica aqui o meu disclaimer.
Na entrevista ao Fast Company, Berners-Lee falou sobre a urgência do projeto: “nós temos que fazer isto agora. É um momento histórico.” Dá pra ver que ele está animado com o grande desafio que tem pela frente. Duas frases no texto me chamaram de Berners-Lee me chamaram a atenção, a primeira delas é: “estou incrivelmente otimista para esta nova era da web.” Já fazia um bom tempo que eu não via Tim Berners-Lee tão animado com a web, e isso por si só pra mim é um ótimo sinal.
A outra é a frase que termina o texto: “o futuro ainda é muito maior do que o passado.” Essa aí vou levar como lição de vida, e recomendo a todos que façam o mesmo. Não adianta nada pensar no que deu errado com a web até agora, e sim em como podemos criar algo melhor em cima dela.
Fonte = Nick Ellis
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